Desapego na raça
Você
acha que descartar objetos, situações e hábitos é fácil? Veja o que acontece com quem decide
jogar 50 coisas fora em duas semanas
POR Liane Alves
Olho com ternura para o meu chapéu
de veludo verde. Comprei-o aos 22 anos numa sofisticada loja em Washington,
quando fazia minha primeira reportagem como enviada especial fora do Brasil. O
chapéu se converteu numa espécie de amuleto para mim. Sempre com ele na mala,
viajei para lugares tão exóticos quanto Hong Kong, ou o norte da Tailândia. Se
ele tivesse um passaporte, teria todas suas páginas carimbadinhas.
Nunca me permiti jogá-lo fora,
pois ele despertava boas memórias. Foi emprestado algumas vezes, chegou a
viajar para a Alemanha em outra cabeça e depois continuou sua vida de chapéu
itinerante dentro dos armários. Se fosse um habitante do planeta dos chapéus,
hoje ele poderia ser considerado um nobre ancião.
Por isso, agora o seguro em
minhas mãos com o mesmo fervor com que Hamlet agarrava o crânio de seu pai e
lançava questões como “ser ou não ser”. Porém, minha pergunta diante do meu
chapéu de veludo verde é: jogo ou não jogo fora? Faria essa mesma pergunta
diante de dezenas de outros objetos que pretendia me desfazer ao me mudar de
casa. Essa tarefa insólita fazia parte da proposta da VIDA SIMPLES: seguir à
risca o livro “Jogue Fora 50 Coisas”, da americana Gail Blanke, e treinar na
prática o desapego.
“Nada mais fácil”, pensei. Já
tinha jogado milhares de coisas fora. Quanto às questões internas, em relação a
crenças e hábitos, pensava estar relativamente bem resolvida. Você conhece a
expressão “ledo engano”, não é? Pois esse foi o mais ledo de todos os enganos
em que já caí na minha vida. Jogar objetos fora era apenas a ponta do iceberg.
O que isso envolvia e mobilizava internamente é que era o grande problema.
Embora eu tivesse dezenas de livros para me desfazer, eles contam como uma
única coisa. Batons velhos e rímeis duros também são computados em uma única
categoria: maquiagem. E assim por diante: vários CDs só valem um, assim como
lençóis, almofadas e, principalmente, sapatos. Tudo um. Quando constatei o
artifício maroto, comecei a suspeitar que essa história ia ser um pouquinho
mais complicada do que eu pensava.
“Sapatos, roupas ou a decoração
da casa são elementos que empregados para exteriorizar nossa personalidade,
tanto quanto os usamos para ajudar a construí-la”, afirma a psicóloga Maria
Cândida do Amaral. Os objetos são como uma espécie de linguagem que utilizamos
para nos revelar e ao mesmo tempo, nos autodefinir.
Sei. Será que é por isso que me
custa tanto a me desapegar da minha fruteira de cristal de Murano? Gail já
tinha avisado que, ao jogar coisas fora, em algum momento entraríamos em
contato com um inimigo oculto: nossas crenças. O que me prendia à minha
emblemática fruteira? Não queria jogá-la fora por causa de uma associação. Sua
forma triangular me fazia lembrar da Santíssima Trindade. Achava muito forte
ter esse símbolo sagrado presente em casa e de uma forma tão bonita.
De acordo com Gurdjieff, desde
que vista conscientemente, a associação não atrapalha mais. Quanto mais
conseguirmos enxergar nossos condicionamentos e o nosso limitado modo de pensar
e ver o mundo, mais essa visão mostra nossa dolorosa situação de inconsciência
de nós mesmos ou, como ele dizia, o horror da situação. E, para ele, a auto-
observação é o que vale, pois ela é o ponto de partida da busca pela
consciência. Não é preciso necessariamente mudar alguma coisa, só ver nossas
limitações. Então, a fruteira ficou.
E assim chegou ao número 49,
depois de duas batalhadas semanas jogando coisas fora. Gail garante que o
número 50 é uma espécie de centésimo macaco: depois de tê-lo atingido, tudo
pode mudar definitivamente em nossas vidas. É óbvio que deixei o meu querido
chapéu verde por último. Agora posso jogá-lo fora. Não me sinto mais tão
atrelada à crença de que só ele pode me trazer novas viagens. Estou prontinha.
O problema é que não consigo encontrá-lo no meio da bagunça de caixas, sacos
para doação e lotes de venda. Portanto,
ficamos assim: se encontrá-lo, jogo fora. Mas uma coisa é certa: depois de todo
esse processo de libertação e descarte, está claro para mim que ele não tem
mais serventia.
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Caça Informação
1) Onde e em que circunstâncias a
autora do texto adquiriu seu chapéu de veludo verde?
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2) Qual era o maior problema dela
em relação a jogar objetos fora?
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3) Com base no trecho com a
opinião de psicóloga Maria Cândida do Amaral, que traços da personalidade da
autora do texto podem ser detectados a partir de seu chapéu verde?
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Quer o gabarito das perguntas? É
só colocar seu e-mail nos comentários, que eu te mando!
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Chegou a sua vez... Sem precisar de
uma atitude tão drástica quanto a sugerida pelo livro de Gail Blanke, que tal
se desfazer de cinco objetos ainda hoje?
Liberte-se!!
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